Resolução do Parlamento Europeu sobre as consequências do acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2005 (C-176/03, Comissão/Conselho) (2006/2007(INI))
O Parlamento Europeu,
‐ Tendo em conta o artigo 10º do Tratado CE e o artigo 47º do Tratado UE,
‐ Tendo em conta o artigo 5º do Tratado CE,
‐ Tendo em conta a sua Resolução de 3 de Setembro de 2003 sobre as bases jurídicas e o respeito do Direito Comunitário(1),
‐ Tendo em conta o acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2005 no Processo C-176/03 Comissão/Conselho(2),
‐ Tendo em conta a Comunicação da Comissão, de 23 de Novembro de 2005, ao Parlamento Europeu e ao Conselho sobre as consequências do acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2005 (C-176/03, Comissão/Conselho) (COM(2005)0583),
‐ Tendo em conta o artigo 45º do seu Regimento,
‐ Tendo em conta o relatório da Comissão dos Assuntos Jurídicos e o parecer da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos (A6-0172/2006),
A. Considerando que a aplicação efectiva das regras do direito comunitário figura entre as preocupações essenciais dos órgãos comunitários e constitui uma obrigação fundamental dos Estados-Membros, consagrada no artigo 10º do Tratado CE,
B. Considerando que, ao longo de décadas, a realização do projecto europeu conduziu à criação de um espaço jurídico comum no interior do qual as ordens jurídicas nacionais e a europeia se imbricaram progressivamente numa construção independente assente não apenas sobre valores comuns, mas também sobre os princípios do primado do direito comunitário e da cooperação leal entre os Estados-Membros e as Instituições comunitárias (artigo 10º do Tratado CE),
C. Considerando que todas as acções da Comunidade devem respeitar o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5º do Tratado CE,
D. Considerando que a jurisprudência do Tribunal de Justiça estabeleceu, repetidamente, que as medidas necessárias para garantir a aplicação efectiva do direito comunitário podem comportar sanções penais,
E. Recordando que os princípios do primado do direito comunitário e da cooperação leal podem afectar a legislação penal nacional dos Estados-Membros na medida em que os últimos estão obrigados, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça:
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a revogar qualquer disposição penal incompatível com o direito comunitário (acórdão de 19 de Janeiro de 1999, C-348/96, Donatella Calfa(3), n° 17: "embora, em princípio, a legislação penal caiba no âmbito das competências dos Estados-Membros, é jurisprudência assente que o direito comunitário impõe limites a esta competência, não podendo uma tal legislação, com efeito, restringir as liberdades fundamentais garantidas pelo direito comunitário"),
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a estabelecer sanções "efectivas, proporcionadas e dissuasivas", incluindo as de natureza penal, sempre que necessário, para garantir a efectividade do direito comunitário (acórdão de 21 de Setembro de 1989, 68/88, Comissão/Grécia(4); acórdão de 12 Setembro de 1996, C-58/95, Gallotti(5); acórdão de 21 de Setembro de 1999, C-378/97, Wisjenbeek(6); acórdão de 28 de Janeiro de 1999, C-77/97, Unilever, n° 36: "as disposições que os Estados-Membros têm de adoptar [...] devem prever que esse tipo de publicidade constitui uma infracção, designadamente de natureza penal, a que se aplicam sanções de natureza dissuasiva"(7)),
F. Considerando que a jurisprudência do Tribunal visa essencialmente aclarar os fundamentos jurídicos aplicáveis ao primeiro e terceiro pilares, estabelecendo simultaneamente que, de facto, o legislador europeu não tem competência em matéria penal ou processual penal,
G. Considerando, em especial, que, no acórdão proferido no processo C-176/03, o Tribunal de Justiça, excluindo embora uma competência geral da Comunidade em matéria penal, afirmou que esse facto não impede que o legislador comunitário, quando a aplicação de sanções penais efectivas, proporcionadas e dissuasivas por parte das autoridades nacionais competentes constitui uma medida indispensável para lutar contra os atentados graves ao ambiente, tome medidas em relação com o direito penal dos Estados-Membros e que considere necessárias para garantir a plena efectividade das normas que elabora em matéria de protecção do ambiente,
H. Considerando que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a fim de determinar correctamente a base jurídica de um acto comunitário, deve ter-se em conta a finalidade e o conteúdo do próprio acto e que, por conseguinte, nos termos dos artigos 29º e seguintes do Tratado UE, se encontram feridos de ilegalidade os actos adoptados com fundamento no Título VI do Tratado UE que, pela sua finalidade e conteúdo, poderiam ter sido baseados no Tratado CE,
I. Considerando que o objecto do acórdão no processo C-176/03 se circunscreve a matérias relacionadas com a protecção do ambiente, o que constitui um dos principais desígnios da Comunidade, tal como estipulado nos artigos 2º e 3º do Tratado CE,
J. Considerando que o acórdão no caso C-176/03 deve, por consequência, ser considerado cautelosamente e aplicado caso a caso apenas naqueles domínios que se encontram entre os princípios, objectivos e competências fundamentais da Comunidade,
K. Considerando que, na comunicação supracitada, a Comissão quis estender o alcance das conclusões do Tribunal de Justiça, considerando também ilegais as disposições de carácter penal aprovadas ao abrigo do Título VI do Tratado UE noutros domínios da competência comunitária e não no da política do ambiente,
L. Considerando que não parece haver razão para fazer uma interpretação extensiva automática do alcance do referido acórdão,
M. Considerando ainda que, de acordo com a Comissão, podem existir na legislação vigente actos aprovados ao abrigo do Título VI do Tratado UE cuja base legal deve, de acordo com a interpretação lata que é feita pela Comissão, ser considerada errónea à luz do acórdão no processo C-176/03,
N. Considerando que, para prevenir a anulação da legislação em causa e garantir a segurança jurídica, a Comissão se propõe intervir a títulos diversos na legislação vigente e nas propostas pendentes,
O. Considerando a importância da questão da legitimidade da inclusão de disposições penais na legislação aprovada no âmbito do primeiro pilar da União enquanto etapa subsequente da evolução do direito comunitário,
P. Considerando o papel do Parlamento, enquanto órgão legislativo investido de legitimidade democrática e representativo dos povos europeus e, em conjunto com as demais instituições europeias, de motor dessa evolução, nomeadamente quando se trata de adoptar disposições susceptíveis de afectar as liberdades fundamentais dos cidadãos,
Q. Considerando que, também na ordem jurídica da União Europeia, o princípio da reserva de lei em matéria penal constitui uma garantia inalienável ao serviço da protecção da liberdade individual que subordina o exercício de qualquer poder ao primado da lei, incluindo no que se refere à definição das infracções puníveis e das sanções que lhes devem ser aplicadas,
1. Acolhe favoravelmente o acórdão no processo C-176/03, na medida em que tornou claro que, para determinar correctamente a base jurídica de um acto, é conveniente referir-se à finalidade e ao conteúdo do próprio acto, tendo por esse motivo anulado uma decisão-quadro em matéria de protecção do ambiente que havia sido erroneamente adoptada, não com base no primeiro pilar, mas sim no terceiro pilar;
2. Congratula-se pelo facto de o Tribunal de Justiça, baseando-se nessa premissa, ter reafirmado que o legislador europeu pode adoptar, no âmbito do primeiro pilar, as disposições de direito penal que sejam necessárias para garantir a plena efectividade das normas emanadas nesse mesmo pilar, no caso vertente, em matéria de protecção do ambiente;
3. Solicita à Comissão que não estenda de forma sistemática as conclusões do Tribunal de Justiça a todas as outras matérias regidas pelo primeiro pilar;
4. Reafirma, mais uma vez, a urgência em encetar, com base no artigo 42º do Tratado UE, o procedimento que visa a inclusão da cooperação judiciária e policial em matéria penal no pilar comunitário, pilar esse que é o único a assegurar condições para a aprovação de disposições europeias consentâneas com o pleno respeito do princípio democrático, da eficácia da tomada de decisão e sob um controlo jurisdicional adequado;
5. Considera que, na expectativa de tal evolução, é urgente definir uma estratégia política coerente no que diz respeito ao recurso às sanções penais na legislação europeia; recorda que as disposições penais aprovadas devem ser coerentes entre elas, independentemente da base jurídica ou do "pilar" em que assentam; lamenta, além disso, que os cidadãos sejam, em última instância, as vítimas do actual dualismo entre a Comunidade Europeia e a União Europeia nestas matérias;
6. Considera que uma estratégia entre pilares neste domínio exige:
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uma cooperação muito estreita entre as Instituições da União Europeia e entre estas e os Estados-Membros,
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uma certa flexibilidade na definição da natureza e do alcance das sanções, por forma a evitar o "dumping" penal e a facilitar a cooperação entre autoridades judiciais,
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a execução de formas estruturadas de cooperação entre as autoridades judiciais, a avaliação mútua e a recolha de informações fiáveis e comparáveis sobre o impacto das disposições penais assentes em legislação europeia;
Recorda que é igualmente importante respeitar os equilíbrios jurídicos existentes a nível nacional em matéria penal e apela ao desenvolvimento de uma abordagem calculada para a inserção, nos textos comunitários, das disposições penais necessárias a assegurar a efectividade do direito comunitário, qualquer que seja a natureza que revistam e insta, quanto a este ponto, a uma cooperação mais estreita com os parlamentos nacionais; convida a Comissão, em colaboração com o Eurojust e a rede judiciária europeia, a instituir um sistema de "feed-back" sobre a aplicação, nos Estados-Membros, das sanções penais previstas por disposições europeias; congratula-se com a iniciativa envidada pelos Supremos Tribunais dos Estados-Membros de se reunirem em rede, a fim de debater temas de interesse comum associados à actividade da União Europeia e portanto, nomeadamente, o tema da coexistência de disposições europeias e nacionais em matéria penal;
7. Concorda com a Comissão quanto à necessidade de retirar ou modificar as propostas legislativas pendentes fundamentadas numa base jurídica que, à luz do acórdão no processo C-176/03, deve ser considerada incorrecta;
8. Concorda com a Comissão quanto à necessidade de identificar novas bases jurídicas com fundamento no Tratado CE para instrumentos de legislação aprovados no âmbito do terceiro pilar e que, à luz do acórdão no processo C-176/03, devem ser considerados ilegais, bem como de reiniciar o processo legislativo sobre essas novas bases jurídicas;
9. Convida a Comissão a reexaminar os actos legislativos que identificou, privilegiando uma abordagem casuística, ao invés de proceder de forma generalizada e indiscriminada, a fim de garantir uma análise exaustiva e a escolha de uma base jurídica correcta para cada caso concreto;
10. Solicita à Comissão que aplique o acórdão do Tribunal de Justiça apenas naqueles domínios que fazem parte dos princípios, objectivos e competências fundamentais da Comunidade e que o aplique cautelosamente, numa base casuística, e sempre em cooperação com o Conselho e com o Parlamento Europeu;
11. Relembra à Comissão que o reexame dos actos legislativos vigentes, apresentando eventualmente propostas destinadas a corrigir a base jurídica mas deixando o seu conteúdo inalterado, não significa que se deva privar o Parlamento Europeu do seu papel inalienável de co-legislador, sacrificando a mais valia democrática que, na sua qualidade de Câmara eleita representativa dos cidadãos, o Parlamento representa para a integração europeia;
12. Manifesta a sua oposição a um acordo interinstitucional por força do qual o Parlamento se veria obrigado a renunciar a fazer valer os seus direitos;
13. Recorda, no entanto, que o Tribunal de Justiça observou que "uma directiva não pode ter como efeito, por si própria e independentemente de uma lei interna adoptada por um Estado-Membro para a sua aplicação, determinar ou agravar a responsabilidade penal de quem quer que aja em violação das suas disposições"(8);
14. Partilha do ponto de vista da Comissão, segundo o qual qualquer recurso a medidas de direito penal deve fundar-se na necessidade de tornar efectiva a política comunitária em causa e respeitar a coerência global das disposições penais; considera que, em princípio, a responsabilidade pela boa aplicação do direito comunitário incumbe efectivamente aos Estados-Membros;
15. Solicita à Comissão que tenha presente que os pressupostos da inclusão de medidas penais no primeiro pilar devem ser claros e determinados com antecedência; que estes pressupostos apenas são válidos quando o respeito do direito comunitário não puder ser garantido senão mediante o recurso a sanções penais; em particular, é necessário certificar-se da existência de infracções frequentes e repetidas do direito comunitário que não tenham podido ser evitadas por meio da legislação vigente, mesmo recorrendo ao direito interno dos Estados-Membros;
16. Recorda que o direito comunitário apenas pode prever regras mínimas na forma de directivas no que respeita a aplicação de sanções penais pelos Estados-Membros; no entanto, entende que, em determinados casos, importa definir melhor a acção dos Estados-Membros, especificando expressamente: a) as condutas que constituem infracção penal, e/ou b) o tipo de sanções a aplicar, e/ou c) outras medidas próprias do domínio em questão e relacionadas com o direito penal;
17. Recorda aos Estados-Membros que, por força do artigo 10º do Tratado CE, lhes incumbe a obrigação de assegurar a efectividade geral da acção comunitária, recomendando-lhes, por conseguinte, que assegurem que as disposições das respectivas legislações penais também prossigam este objectivo;
18. Concorda com a Comissão quando esta afirma que, em qualquer caso, as disposições horizontais de direito penal destinadas a favorecer a cooperação judiciária e policial entre os Estados-Membros e as medidas de harmonização do direito penal no âmbito do espaço de liberdade, de segurança e de justiça devem ser regidas pelo Título VI do Tratado UE;
19. Encarrega o seu Presidente de transmitir a presente resolução ao Conselho, à Comissão e aos governos e parlamentos dos Estados-Membros.
Proc. n° 80/86, Kolpinghuis Nijmegen, Colect. de 1987, p. 3969, nº 13, e Proc. n° C-60/02, X , Colect. de 2004, p. I-651, nº 61, e jurisprudência aí citada.