Resolução do Parlamento Europeu, de 4 de Setembro de 2007, sobre as implicações institucionais e jurídicas da utilização de instrumentos jurídicos não vinculativos ("soft law") (2007/2028(INI))
O Parlamento Europeu,
‐Tendo em conta o Tratado CE e, em particular, os seus artigos 211º, 230º e 249º,
‐Tendo em conta o artigo 45º do seu Regimento,
‐Tendo em conta o relatório da Comissão dos Assuntos Jurídicos e os pareceres da Comissão dos Assuntos Constitucionais, da Comissão do Mercado Interno e da Protecção dos Consumidores e da Comissão da Cultura e da Educação (A6-0259/2007),
A. Considerando que a noção de soft law (instrumento jurídico não vinculativo), baseada na prática comum, é ambígua e perniciosa, não devendo ser usada em nenhum dos documentos das instituições comunitárias,
B. Considerando que a distinção dura lex/mollis lex, sendo conceptualmente aberrante, não deve ser aceite, nem reconhecida,
C. Considerando que os chamados instrumentos de soft law, como é o caso das recomendações, dos livros verdes, dos livros brancos ou das conclusões do Conselho, não possuem qualquer valor jurídico ou força vinculativa,
D. Considerando que os instrumentos de soft law não conferem uma protecção jurisdicional completa,
E. Considerando que um recurso frequente a instrumentos de soft law implicaria uma mudança do modelo único da Comunidade Europeia para o de uma organização internacional tradicional,
F. Considerando que existem actualmente divergências sobre a forma de aumentar a eficiência da função regulamentar da União Europeia ao nível tanto dos instrumentos de soft law (não vinculativos) e de hard law (vinculativos),
G. Considerando que, no acórdão proferido no processo Van Gend en Loos, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias declarou que o Tratado constitui "mais do que um acordo meramente gerador de obrigações recíprocas entre os Estados Contratantes (...) A Comunidade constitui uma nova ordem jurídica de direito internacional, a favor da qual os Estados limitaram, ainda que em domínios restritos, os seus direitos soberanos, e cujos sujeitos são não só os Estados-Membros, mas também os seus nacionais. (...) Por conseguinte, o direito comunitário, tal como impõe obrigações aos particulares, também lhes atribui direitos que entram na sua esfera jurídica. Tais direitos são constituídos não só quando é feita uma atribuição expressa pelo Tratado, mas também como contrapartida de obrigações impostas pelo Tratado de forma bem definida, quer aos particulares, quer aos Estados-Membros, quer às instituições comunitárias."(1),
H. Considerando que, por conseguinte, o direito comunitário pode distinguir-se do direito internacional público pela sua força vinculativa, que se impõe não só aos EstadosMembros mas também aos particulares, conferindo-lhes direitos subjectivos que beneficiam de protecção jurisdicional, e envolve um conjunto de instituições incluindo o Parlamento Europeu que é directamente eleito pelos cidadãos da União; que, além disso, o ordenamento jurídico europeu assenta na democracia e no Estado de direito, tal como é proclamado no artigo 6º e no preâmbulo do Tratado UE,
I. Considerando que isto significa que as instituições da UE somente podem actuar em conformidade com o princípio da legalidade, ou seja, quando existe uma base jurídica que lhes atribui competência e nos limites das respectivas competências, e que, para garantir que assim é, existe o Tribunal de Justiça,
J. Considerando que o procedimento adequado, nos domínios em que a Comunidade possui competência legislativa, consiste na aprovação dos actos legislativos pelas instituições democráticas da União, o Parlamento e o Conselho, na medida do necessário em observância dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade; considerando que só mediante a aprovação de legislação através dos processos institucionais previstos no Tratado é possível garantir a segurança jurídica, o Estado de direito, o controlo jurisdicional e a aplicação das leis e que isto implica igualmente que seja respeitado o equilíbrio institucional consagrado no Tratado e permite que haja transparência no processo de tomada de decisão,
K. Considerando que, de modo geral, quando a Comunidade goza de competência legislativa, deve ser excluída a utilização de instrumentos de soft law ou de "normas de conduta enunciadas em instrumentos desprovidos de força jurídica obrigatória por si próprios, mas que podem, todavia, produzir alguns efeitos jurídicos – indirectos – e cujo objectivo consiste na produção de efeitos práticos, sendo esses efeitos possíveis"(2), tendo sido tradicionalmente usados para acudir a uma lacuna de capacidades legislativas formais e/ou meios de execução e constituindo, enquanto tais, instrumentos típicos do direito internacional público,
L. Considerando que são legítimos os instrumentos de soft law, caso o Tratado os preveja expressamente, desde que não sejam utilizados como substitutos da legislação quando a Comunidade goze de competência legislativa e se afigure necessária uma regulamentação comunitária no respeito dos princípios da subsidiariedade e proporcionalidade, já que isto constituiria inclusivamente uma violação do princípio da atribuição de competências específicas; e que este princípio se aplica a fortiori às comunicações da Comissão destinadas a interpretar a legislação comunitária; considerando que os instrumentos preparatórios, como os livros verdes e os livros brancos, também constituem uma utilização legítima dos instrumentos de soft law, bem como as comunicações e orientações publicadas pela Comissão a fim de explicar a forma como aplica a política relativa à concorrência e aos auxílios estatais,
M. Considerando que estes instrumentos, que podem ser usados como utensílios interpretativos ou preparatórios de actos legislativos de carácter vinculativo, não devem ser tratados como legislação, nem lhes deve ser atribuída qualquer eficácia normativa,
N. Considerando que uma tal situação produziria confusão e insegurança num domínio em que deverão prevalecer a clareza e a certeza jurídica, no interesse dos EstadosMembros e dos cidadãos,
O. Considerando que, para além de respeitar o direito de iniciativa da Comissão, o Parlamento também defende o seu próprio direito de convidar a Comissão a apresentar uma proposta legislativa (artigo 192º do Tratado CE),
P. Considerando que o método aberto de coordenação pode servir para promover a realização do mercado interno, mas que é lamentável ser muito fraca a participação no mesmo do Parlamento e do Tribunal de Justiça; considerando que, em consequência do défice democrático do chamado método aberto da coordenação, este não deve ser desvirtuado substituindo-se a falta de competências legislativas da Comunidade para assim impor de facto aos EstadosMembros obrigações equivalentes às que derivam das competências legislativas mas que são estabelecidas à margem dos processos legislativos previstos no Tratado,
Q. Considerando que o artigo 211º do Tratado CE dispõe que "a fim de garantir o funcionamento e o desenvolvimento do mercado comum, a Comissão (...) formula recomendações (...) sobre as matérias que são objecto do presente Tratado, quando este o preveja expressamente ou quando tal seja por ela considerado necessário", mas que, nos termos do quinto parágrafo do artigo 249º, as recomendações não são vinculativas e constituem, segundo o Tribunal, "actos que não se destinam a produzir efeitos vinculativos, mesmo em relação aos seus destinatários"(3) e que "não podem criar direitos invocáveis pelos particulares perante um juiz nacional"(4), e considerando que o artigo 230º do Tratado CE exclui as recomendações do controlo de legalidade, pelo facto de não serem vinculativas,
R. Considerando, no entanto, que o Tribunal declarou que os actos em questão "não podem ser considerados como desprovidos de qualquer efeito jurídico, [cabendo aos] juízes nacionais [...] tomar em consideração as recomendações para resolver os litígios que lhes são submetidos, nomeadamente quando estas auxiliem a interpretação de disposições nacionais adoptadas com a finalidade de assegurar a respectiva execução, ou ainda quando se destinam a completar disposições comunitárias com carácter vinculativo"(5),
S. Considerando que é possível que as recomendações, se utilizadas sem a necessária precaução, tenham por efeito que certos actos da Comissão resultem ultra vires,
T. Considerando que o artigo I-33 do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa contém uma disposição semelhante à do artigo 211º do Tratado CE, mas acrescenta que "quando lhes tenha sido submetido um projecto de acto legislativo, o Parlamento Europeu e o Conselho abster-se-ão de adoptar actos não previstos pelo processo legislativo aplicável no domínio visado",
U. Considerando que a Comissão adoptou, em 2005, uma recomendação sobre gestão transfronteiriça de direitos de autor para a prestação legítima de serviços musicais on line, com base no artigo 211º do Tratado CE, descrita como "um instrumento de soft law... destinado a dar ao mercado uma oportunidade de movimento na direcção certa" e ostensivamente visando dar corpo à actual Directiva relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade de informação(6) e à Directiva relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos ao direito de autor em matéria de propriedade intelectual(7), e considerando que, visto que o seu objectivo principal consiste em estimular o licenciamento multiterritorial e a recomendar como o mesmo deve ser regulamentado, a Comissão está a definir opções políticas específicas, por meio de instrumentos de soft law,
V. Considerando que a Comissão contemplou ou parece considerar a possibilidade de actuar por meio de recomendações noutros domínios em que a Comunidade possui competência legislativa, incluindo a regulamentação relativa às taxas sobre direitos de autor e aos limites à responsabilidade dos auditores,
W. Considerando, além disso, que o projecto relativo ao direito europeu dos contratos conserva ainda a natureza de um instrumento de soft law,
X. Considerando que, quando a Comunidade goza de competência legislativa, mas falta vontade política para aprovar legislação, a utilização de instrumentos de soft law é passível de contornar os órgãos legislativos realmente competentes, pode menosprezar os princípios da democracia e do Estado de direito, nos termos do artigo 6º do Tratado UE, bem como os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade nos termos do artigo 5º do Tratado CE, e resultar numa actuação ultra vires por parte da Comissão,
Y. Considerando que o recurso aos instrumentos de soft law tende igualmente a criar a percepção pública de uma "superburocracia" sem legitimidade democrática, não apenas distante dos cidadãos, mas também hostil aos mesmos, disposta a alcançar compromissos com representantes de interesses poderosos no quadro de negociações que não são nem transparentes, nem compreensíveis para os cidadãos, e considerando que tal pode também suscitar expectativas legítimas por parte de terceiros afectados (os consumidores, por exemplo), que não têm qualquer modo de se defenderem em justiça de actos que podem produzir efeitos jurídicos adversos para si,
Z. Considerando que a agenda "Legislar Melhor" não deve ser subvertida, de modo que permita ao executivo comunitário legislar efectivamente mediante instrumentos de soft law, minando assim potencialmente a ordem jurídica comunitária e evitando o envolvimento do Parlamento democraticamente eleito e o controlo jurídico pelo Tribunal de Justiça, além de privar os cidadãos de vias de recurso,
AA. Considerando que não está previsto nenhum procedimento para que o Parlamento seja consultado sobre a proposta utilização de instrumentos de soft law, tais como as recomendações e das comunicações interpretativas,
1. Entende que, no contexto da Comunidade, o recurso aos instrumentos de soft law constitui, na maioria dos casos, um procedimento ambíguo e ineficaz, susceptível de produzir um efeito negativo sobre a legislação comunitária e o equilíbrio institucional, devendo ser utilizado com precaução, inclusivamente nos casos previstos pelo Tratado;
2. Recorda que os chamados instrumentos jurídicos não vinculativos não podem substituir os actos e os instrumentos jurídicos existentes para assegurar a continuidade do processo legislativo, em especial, no domínio da cultura e da educação;
3. Sublinha que as todas as instituições da UE, incluindo o Conselho Europeu, devem considerar opções legislativas e não legislativas ao decidir, caso a caso, qual a eventual acção a tomar;
4. Considera que o método aberto de coordenação suscita reservas à luz dos princípios do Estado de direito, pois funciona sem suficiente participação parlamentar ou controlo jurisdicional; entende que apenas deve ser utilizado em casos excepcionais e que importa examinar as possibilidades de participação do Parlamento neste processo;
5. Deplora a utilização dos instrumentos de soft law pela Comissão, na medida em que os mesmo se substituam à legislação da UE que se afigure necessária, no respeito dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, ou extrapolem a jurisprudência do Tribunal de Justiça, penetrando em territórios não regulamentados;
6. Insta as Instituições a actuarem por analogia com o artigo I-33º do Tratado Constitucional, abstendo-se, deste modo, de adoptar instrumentos de soft law quando os projectos de actos legislativos estejam em curso de apreciação; considera que, no quadro do direito em vigor, esta obrigação já decorre do princípio do Estado de direito consignado no artigo 6º do Tratado da UE;
7. Insta a Comissão a fazer um esforço particular para garantir a transparência, a visibilidade e a responsabilidade pública no momento de adoptar actos comunitários não vinculativos, assim como a aumentar o recurso à avaliação de impacto no âmbito do processo decisório;
8. Solicita à Comissão que dê especial atenção aos efeitos dos instrumentos de soft law sobre os consumidores e suas eventuais vias de recurso, antes de propor quaisquer medidas que envolvam instrumentos de soft law;
9. Entende que, no que respeita às comunicações da Comissão, os livros verdes e livros brancos não implicam quaisquer obrigações jurídicas directas; considera, todavia, que da aprovação de documentos de consulta e de declarações de intenções de carácter político não deve ser deduzida a obrigação jurídica de aprovar regulamentação nesse sentido;
10. Entende que as comunicações interpretativas da Comissão prosseguem o objectivo legítimo de criar segurança jurídica, mas não devem ir para além deste objectivo; considera que, quando servem para impor novas obrigações, as comunicações interpretativas constituem um desenvolvimento inadmissível do direito de legislar por via de soft law; considera que, quando uma comunicação contém disposições detalhadas que não estão directamente contidas nas liberdades fundamentais do Tratado, tal corresponde a um afastamento do seu objectivo e é, pois, nula(8);
11. Entende que as comunicações que preenchem estes critérios devem ficar, portanto, limitadas àqueles casos em que o Parlamento e o Conselho, ou seja, o legislador, tenham instado a Comissão a elaborar as necessárias comunicações interpretativas; considera que uma concretização do Tratado está reservada ao legislador e a sua interpretação ao Tribunal de Justiça;
12. Entende que a normalização e os códigos de conduta constituem importantes elementos da auto-regulação; considera que a normalização não deve, todavia, levar a uma regulamentação excessiva e representar, assim, um ónus adicional, especialmente para as pequenas e médias empresas; entende que, nas bases jurídicas respectivas, devam ser tomadas precauções contra o excesso de regulamentação;
13. Salienta que, embora seja legítimo que a Comissão faça uso de instrumentos pré-legislativos, tal procedimento não deve ser utilizado de forma abusiva nem indevidamente prolongada; julga necessário que a Comissão decida, relativamente a certos domínios, como o projecto referente ao direito dos contratos, se deve, ou não, fazer uso do seu direito de iniciativa, determinando, em caso afirmativo, qual é a base jurídica aplicável;
14. Sublinha que o Parlamento, na sua qualidade de única instituição comunitária democraticamente eleita, não é actualmente consultado sobre a utilização dos chamados instrumentos jurídicos de soft law, como as recomendações da Comissão elaboradas com base no artigo 211º da Tratado CE, as comunicações interpretativas e outros documentos de natureza afim;
15. Considera que os acordos interinstitucionais apenas podem produzir efeitos jurídicos entre as instituições da UE, pelo que não constituem soft law em termos de efeitos jurídicos em relação a terceiros;
16. Convida a Comissão a estabelecer, em colaboração com o Parlamento, um modus operandi que garanta a participação dos órgãos democraticamente eleitos, eventualmente através de um acordo interinstitucional e, deste modo, um controlo mais eficaz da necessidade de adopção de instrumentos de soft law;
17. Solicita à Comissão que acorde com o Parlamento as regras de consulta a este último antes da adopção de instrumentos de soft law pela Comissão, a fim de permitir um controlo das medidas propostas de soft law e evitar qualquer utilização abusiva de poderes por parte do executivo; propõe retomar as conversações relativas à conclusão de um acordo interinstitucional nesta matéria; entende que um tal acordo deverá, em particular, resolver a contradição criada entre as disposições do artigo 211º, do quinto parágrafo do artigo 249º, bem como do artigo 230º do Tratado CE e a jurisprudência do Tribunal de Justiça, nos casos em que este último exija aos tribunais nacionais que tenham em consideração, no contexto de litígios pendentes, recomendações não vinculativas segundo o Tratado;
18. Reitera a importância da participação do Parlamento, enquanto principal representante dos interesses dos cidadãos da União Europeia, em todos os processos de tomada de decisão, a fim de contribuir para minorar a desconfiança que reina actualmente em relação à integração e aos valores europeus;
19. Salienta, por conseguinte, que há que evitar o recurso a instrumentos de soft law, bem como a respectiva invocação, em todas as circunstâncias e em todos os documentos oficiais das instituições europeias;
20. Encarrega o seu Presidente de transmitir a presente resolução ao Conselho, à Comissão e aos governos e parlamentos dos Estados-Membros.