Decisão do Supremo Tribunal dos EUA de revogar o direito ao aborto nos Estados Unidos e necessidade de garantir o direito ao aborto e a saúde das mulheres na UE
Resolução do Parlamento Europeu, de 7 de julho de 2022, sobre a decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos de revogar o direito ao aborto nos Estados Unidos e a necessidade de garantir o direito ao aborto e a saúde das mulheres na União Europeia (2022/2742(RSP))
O Parlamento Europeu,
– Tendo em conta a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950,
– Tendo em conta a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, de 1979,
– Tendo em conta a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia («Carta»), de 2000,
– Tendo em conta a sua Resolução, de 24 de junho de 2021, sobre a situação da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na UE, no contexto da saúde das mulheres(1),
– Tendo em conta a sua Resolução, de 9 de junho de 2022, intitulada «Ameaças globais aos direitos ao aborto: eventual revogação do direito ao aborto nos Estados Unidos pelo Supremo Tribunal»(2),
– Tendo em conta a decisão do Supremo Tribunal dos EUA, de 24 de junho de 2022, que revogou, por cinco votos a favor e quatro votos contra, o acórdão Roe/Wade, pondo assim termo ao direito constitucional federal ao aborto,
– Tendo em conta o artigo 132.º, n.º 2, do seu Regimento,
A. Considerando que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos criou um precedente no processo histórico Roe/Wade (1973), posteriormente afirmado nos acórdãos Planned Parenthood/Casey (1992) e Whole Woman’s Health/Hellerstedt (2016), garantindo o direito constitucional ao aborto legal nos EUA antes da viabilidade do feto; considerando que, em 24 de junho de 2022, o Supremo Tribunal decidiu revogar, por cinco votos a favor e quatro votos contra, o acórdão Roe/Wade, pondo termo ao direito constitucional federal ao aborto, o que permite aos estados proibir o aborto em qualquer momento durante a gravidez e abre a possibilidade de uma proibição total do aborto;
B. Considerando que, na sequência da adoção desta decisão pelo Supremo Tribunal, oito estados já proibiram o aborto; considerando que se espera que 26 estados acabem por adotar leis que ilegalizam quase totalmente o aborto; considerando que 13 estados têm leis ditas provisórias («trigger laws»), que entraram imediatamente em vigor após a revogação da decisão Roe/Wade; considerando que, desde então, tem havido um número crescente de manifestações, tanto nos EUA como em todo o mundo, para defender o direito ao aborto; considerando que, entretanto, a resistência contra a decisão do Supremo Tribunal tem vindo a aumentar, nomeadamente com a publicação, em 24 de junho de 2022, de um «Compromisso multiestatal» dos governadores da Califórnia, do Oregon e de Washington para defender o acesso aos cuidados de saúde reprodutiva, incluindo o aborto e os contracetivos, no qual se comprometeram a proteger os doentes e os médicos contra os esforços de outros estados para exportar as suas proibições de aborto para os três estados em causa(3);
C. Considerando que as vidas das mulheres e das raparigas em todo o território dos Estados Unidos serão afetadas pela decisão do Supremo Tribunal e que as consequências nefastas desta decisão serão sentidas com maior acuidade por pessoas em situações vulneráveis; considerando que a saúde e outros direitos sexuais e reprodutivos também podem ser afetados negativamente; considerando que as restrições ou a proibição do direito ao aborto nos EUA, na UE e em todo o mundo afetará, de forma desproporcionada, as mulheres em situação de pobreza, sobretudo as mulheres categorizadas em função da raça, nomeadamente as mulheres negras, as mulheres hispânicas e as mulheres indígenas, bem como as mulheres provenientes de zonas rurais, as pessoas LGBTIQ, as mulheres com deficiência, as adolescentes, as mulheres migrantes, incluindo as migrantes em situação irregular, e as famílias monoparentais a cargo de mulheres; considerando que os serviços públicos de aborto podem proporcionar um acesso universal ao aborto seguro e legal para todas as mulheres, nomeadamente as mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconómica;
D. Considerando que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, incluindo a prestação de cuidados seguros e legais em matéria de aborto, constituem um direito fundamental; considerando que criminalizar, retardar e recusar o acesso à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos constitui uma forma de violência contra as mulheres e as raparigas; considerando que estas restrições e proibições não reduzem o número de abortos, mas apenas obrigam as pessoas a percorrer longas distâncias ou a recorrer a abortos perigosos, tornando-as também vulneráveis à investigação e à ação penal, e afetam as pessoas que mais carecem de recursos e informações; considerando que quase todas as mortes provocadas por abortos perigosos acontecem em países onde as leis de aborto estão sujeitas a severas restrições; considerando que se estima que o número de mortes maternas por ano nos EUA devido a abortos perigosos aumentará 21 %(4) no segundo ano após a entrada em vigor da proibição; considerando que essas mortes são totalmente evitáveis; considerando que a proibição do aborto conduzirá também a um aumento do número de mortes relacionadas com a gravidez forçada;
E. Considerando que, entre as adolescentes com idades compreendidas entre os 15 e os 19 anos, as complicações ligadas à gravidez e ao parto são a principal causa de morte a nível mundial; considerando que é significativamente mais provável as mães adolescentes interromperem os seus estudos e se confrontarem com situações de desemprego, agravando desse modo o ciclo da pobreza;
F. Considerando que existe uma preocupação cada vez maior com a proteção de dados no contexto da revogação do acórdão Roe/Wade; considerando que, através de aplicações que seguem o ciclo menstrual, ferramentas de geolocalização ou motores de pesquisa, podem ser recolhidos dados sobre pessoas que contactaram uma clínica de aborto, compraram uma pílula abortiva ou pesquisaram informação; considerando que as pessoas podem ser potencialmente identificadas por estes motivos e as informações recolhidas usadas contra elas; considerando que, nos estados que proibiram ou vão proibir o aborto, as autoridades judiciais podem utilizar dados digitais sobre as pessoas que querem abortar e sobre as que praticam ou facilitam o aborto;
G. Considerando que, apesar do progresso geral em matéria de proteção da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos em todo o mundo, incluindo na Europa, um retrocesso no direito de acesso a um aborto seguro e legal é uma preocupação grave; considerando que a revogação do acórdão Roe/Wade pode encorajar o movimento antiaborto na União Europeia; considerando que a Polónia é o único Estado-Membro da UE que retirou da sua legislação um motivo para o aborto, dado que o ilegítimo Tribunal Constitucional decidiu, em 22 de outubro de 2020, reverter os direitos há muito estabelecidos das mulheres polacas, o que implica uma proibição de facto do aborto; considerando que, em Malta, o aborto é proibido; considerando que o aborto médico durante as fases iniciais da gravidez não é legal na Eslováquia e não está disponível na Hungria; considerando que o acesso ao aborto está a ser igualmente a degradar-se em Itália(5); considerando que o acesso aos cuidados de aborto está a ser negado noutros Estados-Membros da UE, tal como recentemente na Croácia(6); considerando que é imperativo que a UE e os seus Estados-Membros defendam a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos e frisem que os direitos das mulheres são inalienáveis e que não podem ser retirados ou enfraquecidos; considerando que é crucial que a UE e os seus Estados-Membros continuem a fazer progressos na garantia do acesso a cuidados de aborto seguros, legais e em tempo útil em conformidade com as recomendações e os dados da Organização Mundial da Saúde;
H. Considerando que, na Europa, as mulheres continuam a enfrentar obstáculos que as impedem de usufruir dos seus direitos e liberdades, devido a restrições legais que negligenciam os direitos das mulheres e colocam desnecessariamente em risco as suas vidas; considerando que, num caso recente, Andrea Prudente, uma turista americana, se viu impedida de abortar em Malta, apesar de a sua vida estar em perigo; considerando que a defensora dos direitos humanos das mulheres, Justyna Wydrzyńska, foi acusada, ao abrigo da draconiana lei polaca antiaborto, de ter fornecido pílulas abortivas a outra mulher;
I. Considerando que a Carta consagra os principais direitos e liberdades fundamentais das pessoas que vivem na UE; considerando que a proteção do aborto seguro e legal tem implicações diretas para o exercício efetivo dos direitos reconhecidos na Carta, tais como a dignidade humana, a autonomia pessoal, a igualdade e a integridade física;
J. Considerando que, em 9 de junho de 2022, o Parlamento aprovou uma resolução firme intitulada «ameaças globais ao direito ao aborto: eventual revogação do direito ao aborto nos Estados Unidos pelo Supremo Tribunal»; considerando que as recomendações desta resolução continuam a ser pertinentes e devem ser aplicadas(7);
1. Condena veementemente, uma vez mais, o recuo relativamente aos direitos das mulheres e à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos a nível mundial, incluindo nos EUA e em alguns Estados-Membros da UE; recorda que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos fundamentais que devem ser protegidos e reforçados e que não podem, de forma alguma, ser enfraquecidos ou retirados; exorta os governos dos Estados que aprovaram leis e outras medidas relativas a proibições e restrições em matéria de aborto a procederem à sua revogação e a garantirem que a sua legislação esteja em consonância com os direitos humanos das mulheres internacionalmente protegidos e com as normas internacionais em matéria de direitos humanos;
2. Propõe incluir o direito ao aborto na Carta; considera que deve ser apresentada ao Conselho uma proposta de alteração da Carta dos Direitos Fundamentais da forma seguinte:
Artigo 7.º-A (novo):"«Artigo 7.º-ADireito ao abortoTodas as pessoas têm direito a um aborto seguro e legal.»;"
3. Reitera, neste contexto, a sua Resolução, de 9 de junho de 2022, sobre a convocação de uma convenção para a revisão dos Tratados; espera que o Conselho Europeu se reúna para este efeito; propõe que, neste processo, o direito ao aborto seguro e legal seja incluído na Carta; solicita que o Parlamento Europeu participe em todas as etapas do processo;
4. Manifesta firme solidariedade e apoio para com as mulheres e raparigas nos EUA, bem como para com as pessoas envolvidas na prestação e na defesa do direito e do acesso a cuidados de aborto legais e seguros em circunstâncias tão difíceis; apoia igualmente os apelos ao Congresso dos EUA para que aprove um projeto de lei que proteja o aborto a nível federal;
5. Está profundamente preocupado com o facto de as proibições e outras restrições em matéria de aborto afetarem, de forma desproporcionada, as mulheres em situação de pobreza, em especial as mulheres definidas pela raça, incluindo as mulheres negras, as mulheres hispânicas e as mulheres indígenas, bem como as mulheres provenientes de zonas rurais, as pessoas LGBTIQ, as mulheres com deficiência, as adolescentes, as mulheres migrantes, incluindo migrantes em situação irregular, e as famílias monoparentais a cargo de mulheres; salienta que as mulheres que, devido a obstáculos financeiros ou logísticos, não possam viajar e recorrer a clínicas de saúde reprodutiva em estados ou países vizinhos, correm um maior risco de serem submetidas a procedimentos inseguros e com risco de vida, e de serem obrigadas a manter a sua gravidez até ao termo contra a sua vontade, o que constitui uma violação dos direitos humanos e uma forma de violência baseada no género(8);
6. Insta o Governo dos EUA a assegurar a proteção de dados para todos, especialmente para as pessoas que querem abortar e sobre as que praticam ou facilitam o aborto, permitindo um acesso privado e seguro, pondo termo ao rastreio comportamental, reforçando as políticas de apagamento de dados, codificando os dados em trânsito, permitindo encriptação de mensagens de extremo a extremo por norma, impedindo o rastreio da localização e assegurando que os utilizadores sejam notificados quando os seus dados são solicitados(9);
7. Salienta a falta de acesso a métodos contracetivos e as atuais necessidades por satisfazer(10); realça que deve ser atribuída prioridade à luta contra a violência sexual, a uma educação para todos em matéria de sexualidade e relacionamentos que seja abrangente, adequada a cada idade e fundamentada, à disponibilização de um conjunto de métodos e materiais contracetivos de elevada qualidade, acessíveis, seguros, a preços comportáveis e, se for caso disso, gratuitos, ao aconselhamento em matéria de planeamento familiar e aos serviços de saúde; reconhece o papel desempenhado pelas ONG enquanto prestadoras de serviços e defensoras da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos nos EUA e incita-as a prosseguirem o seu trabalho;
8. Insta a Comissão e os Estados-Membros a intensificarem o seu apoio político aos defensores dos direitos humanos e aos prestadores de cuidados de saúde que trabalham para promover a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, bem como à sociedade civil e às organizações de base defensoras dos direitos das mulheres e da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, que são intervenientes fundamentais em prol de sociedades com igualdade de género e prestadores cruciais de serviços e de informação em matéria de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, em particular as que trabalham em contextos difíceis na Europa; insta a Comissão a proteger e a apoiar estes defensores dos direitos humanos contra qualquer perseguição que possam vir a enfrentar;
9. Manifesta preocupação com um possível aumento do fluxo de financiamento para grupos antigénero e antiescolha no mundo, incluindo na Europa;
10. Insta a UE e os seus Estados-Membros a reconhecerem legalmente o aborto e a defenderem o respeito do direito ao aborto seguro e legal e de outros direitos sexuais e reprodutivos; insta ainda a UE a agir em favor desta causa e a fazer do reconhecimento deste direito uma prioridade fundamental em negociações no âmbito das instituições internacionais e noutros fóruns multilaterais, como o Conselho da Europa, bem como a defender a inclusão do referido direito na Declaração Universal dos Direitos Humanos;
11. Condena o facto de muitas mulheres na UE ainda não terem acesso a serviços de aborto devido às restrições legais, financeiras, sociais e práticas que subsistem em alguns Estados-Membros;
12. Insta os Estados-Membros a descriminalizarem o aborto e a eliminarem e combaterem os obstáculos ao aborto seguro e legal e ao acesso à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos; insta os Estados-Membros a garantirem o acesso a serviços de aborto seguros, legais e gratuitos, a serviços e materiais de cuidados pré-natais e maternos, ao planeamento familiar voluntário, à contraceção, aos serviços adaptados aos jovens, bem como à prevenção, ao tratamento, aos cuidados e ao apoio em matéria de VIH, sem discriminação;
13. Recomenda a organização, o mais rapidamente possível, de uma delegação aos EUA para avaliar o impacto da decisão do Supremo Tribunal e apoiar as ONG de defesa dos direitos das mulheres e os movimentos pró-escolha no país; solicita que as próximas delegações do Parlamento Europeu que se desloquem a Washington levantem sistematicamente a questão dos direitos em matéria de aborto e se reúnam com as organizações de defesa dos direitos das mulheres;
14. Insta o Serviço Europeu para a Ação Externa, a Delegação da UE nos Estados Unidos, a Comissão e todos os Estados-Membros da UE a utilizarem todos os instrumentos à sua disposição para reforçarem as suas ações destinadas a contrariar os retrocessos em termos de direitos das mulheres e de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, incluindo compensando eventuais cortes no financiamento dos EUA atribuído à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos a nível mundial, bem como defendendo firmemente o acesso universal ao aborto seguro e legal e a outros serviços de saúde e direitos sexuais e reprodutivos e dando prioridade a estes domínios no âmbito das suas relações externas;
15. Encarrega a sua Presidente de transmitir a presente resolução ao Conselho, à Comissão, ao Vice-Presidente da Comissão / Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, ao Representante Especial da UE para os Direitos Humanos, ao Presidente dos Estados Unidos da América e à sua administração, ao Congresso dos EUA e ao Supremo Tribunal dos EUA.
Relatório do FNUAP sobre o estado da população mundial, «Seeing the Unseen: The case for action in the neglected crisis of unintended pregnancy», 30 de março de 2022.