Resolução do Parlamento Europeu, de 12 de dezembro de 2023, sobre conceção dos serviços em linha de forma a criar dependência e proteção dos consumidores no mercado único da UE (2023/2043(INI))
O Parlamento Europeu,
– Tendo em conta o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, nomeadamente o artigo 169.º,
– Tendo em conta a Comunicação da Comissão intitulada «Orientações sobre a interpretação e a aplicação da Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno» (2021/C 526/01),
– Tendo em conta a Comunicação da Comissão intitulada «Orientações sobre a interpretação e a aplicação da Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos direitos dos consumidores» (2021/C 525/01),
– Tendo em conta a Comunicação da Comissão intitulada «Orientações sobre a interpretação e a aplicação da Diretiva 93/13/CEE do Conselho relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores» (2019/C 323/04),
– Tendo em conta o estudo da Comissão intitulado «Behavioural study on unfair commercial practices in the digital environment: dark patterns and manipulative personalisation: final report», da Direção Geral da Justiça e dos Consumidores, de 2022,
– Tendo em conta o relatório intitulado «EU Consumer protection 2.0. Protecting fairness and consumer choice in a digital economy» do grupo coordenador das organizações de consumidores BEUC, de 2022,
– Tendo em conta a consulta da Comissão intitulada «Equidade digital – balanço de qualidade da legislação da UE em matéria de proteção dos consumidores» e o seu relatório de síntese,
– Tendo em conta o estudo do Serviço de Estudos do Parlamento Europeu, de 2019, intitulado «Harmful internet use. Part I: Internet addiction and problematic use»,
– Tendo em conta o relatório do Secretário‑Geral das Nações Unidas, de 2021, intitulado «A nossa Agenda Comum»,
– Tendo em conta a sua resolução, de 12 de março de 2009, sobre a proteção dos consumidores, em especial dos menores, no que respeita à utilização de jogos de vídeo(1),
– Tendo em conta o Regulamento (UE) 2022/2065 relativo a um mercado único para os serviços digitais (Regulamento Serviços Digitais)(2),
– Tendo em conta a proposta de regulamento que estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (Regulamento Inteligência Artificial) (COM(2021)0206),
– Tendo em conta o Regulamento (UE) 2016/679 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados)(3),
– Tendo em conta o artigo 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE,
– Tendo em conta a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e a Observação Geral n.º 25 (2021) a esta Convenção no que respeita ao ambiente digital,
– Tendo em conta a Estratégia para uma Internet Melhor para as Crianças adotada pela Comissão,
– Tendo em conta o artigo 54.º do seu Regimento,
– Tendo em conta o relatório da Comissão do Mercado Interno e da Proteção dos Consumidores (A9‑0340/2023),
A. Considerando que, na atual economia baseada na atenção, certas empresas tecnológicas utilizam funcionalidades de conceção e de sistema para explorar as vulnerabilidades dos utilizadores e dos consumidores, a fim de captar e reter a sua atenção e assim aumentar o tempo que passam nas plataformas digitais; considerando que muitos serviços digitais – como jogos em linha, redes sociais, serviços de transmissão em contínuo de filmes, séries ou música, mercados em linha ou lojas Web – podem ser concebidos para manter os utilizadores na plataforma durante o máximo de tempo possível, a fim de maximizar os dados recolhidos e o tempo e o dinheiro que aí gastam e ainda maximizar a atividade, a participação, a criação de conteúdos, o desenvolvimento da rede e a partilha de dados; considerando que tal se aplica, em particular, aos serviços de monetização de dados; considerando que, por isso, muitos serviços em linha são concebidos de forma a servir vários objetivos duma só vez, nomeadamente otimizar a experiência dos utilizadores e manter a sua atenção e consequentemente criar a maior dependência possível; considerando que nem todos os serviços digitais se baseiam no mesmo modelo de negócio, pelo que enquanto alguns serviços digitais visam a monetização dos dados e o tempo passado na aplicação com o intuito de recolher dados e utilizá‑los para fins publicitários, outros serviços digitais funcionam parcial ou totalmente com modelos baseados na assinatura, que podem ou não conter características de conceção de forma a criar dependência; considerando que alguns serviços funcionam com êxito sem depender duma conceção que prolongue o tempo passado na plataforma; considerando que o sucesso comercial e o desenvolvimento de aplicações éticas não se excluem mutuamente; considerando que os termos «conceção manipuladora», «conceção de forma a criar dependência» ou «conceção comportamental» de serviços em linha descrevem características que conduzem a riscos e danos relacionados com o comportamento, incluindo formas de dependência digital como «utilização excessiva ou nociva da Internet», «dependência dos telemóveis», «dependência tecnológica ou da Internet», «dependência das redes sociais»; considerando que existe um consenso crescente no meio académico sobre a existência de fenómenos como a «dependência das redes sociais»; considerando que convém examinar as características destinadas a captar e reter a atenção ou a criar dependência que incitam a esse comportamento, e não os meios ou dispositivos enquanto tais; considerando que são necessários mais estudos para melhor compreender as questões subjacentes, o impacto dos serviços em linha e as potenciais soluções;
B. Considerando que os serviços digitais, incluindo as redes sociais, estão a transformar profundamente a sociedade e têm efeitos positivos – como o aumento da eficiência, a conectividade, a acessibilidade e o lazer e permitirem que as crianças e os jovens se liguem, conheçam diferentes perspetivas e visões do mundo e os apreciem, além de adquirirem conhecimentos e explorarem áreas de interesse; considerando que as aplicações podem ajudar‑nos a ser mais produtivos, a fazer mais exercício ou a resolver problemas específicos, como demonstram as aplicações de tráfego, de banca ou de tradução; considerando que a digitalização e as redes sociais também colocam novos desafios à sociedade e exigem uma atenção política aos riscos para a saúde física e mental associados à utilização de serviços em linha; considerando que, com todas as melhorias que a tecnologia trouxe à vida das pessoas, a utilização sofisticada de produtos com uma conceção de forma a criar dependência ou de natureza comportamental, enganadora ou persuasiva pode ter consequências prejudiciais para o comportamento dos consumidores em linha, pelo que é necessário dar às entidades reguladoras e aos investigadores os instrumentos de que necessitam para analisar os efeitos da utilização destas plataformas;
C. Considerando que os jovens entre os 16 e os 24 anos passam, em média, mais de sete horas por dia na Internet(4); considerando que uma em cada quatro crianças e jovens revela uma utilização «problemática» ou «disfuncional» dos telemóveis, o que significa padrões comportamentais que refletem a dependência(5); considerando que estudos sugerem que a utilização problemática dos telemóveis continua a aumentar e que muitas crianças raramente se desligam das redes sociais mas utilizam‑nas constantemente ao longo do dia e sentem‑se inseguras sem o telemóvel; considerando que estudos sugerem também que o aumento dos problemas de saúde mental nos adolescentes pode estar relacionado com a utilização excessiva das redes sociais e que a pressão nas redes sociais foi identificada como uma das cinco principais causas de problemas de saúde mental nas crianças; considerando que os mais jovens são mais suscetíveis de desenvolver problemas psicopatológicos e que os comportamentos nocivos e os problemas de saúde mental surgidos na infância podem moldar a vida futura; considerando que o vício do jogo é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde como uma perturbação mental;
D. Considerando que a dependência relacionada com a utilização da Internet pode apresentar efeitos secundários semelhantes aos das dependências relacionadas com substâncias, incluindo provas de tolerância e recidiva(6); considerando que existe uma regulamentação rigorosa para outros produtos e serviços que criam dependência, a fim de evitar a dependência e proteger os consumidores contra danos; considerando que a utilização problemática dos telemóveis ou da Internet já foi associada a uma menor satisfação com a vida e a sintomas de saúde mental – tais como depressão, baixa autoestima, distúrbios da imagem corporal, distúrbios alimentares, ansiedade, níveis elevados de perceção de stress, negligência da família e dos amigos, perda de autocontrolo, privação do sono e sintomas obsessivos‑compulsivos, como a obsessão de comprar por jovens adultos(7); considerando que os utilizadores intensivos dos meios de comunicação digitais são duas vezes mais suscetíveis de ter problemas de saúde mental, incluindo fatores de risco de suicídio e automutilação; considerando que as crianças e os jovens são mais vulneráveis a estes sintomas; considerando que as condições de saúde mental criadas na infância podem moldar o ciclo de vida subsequente duma pessoa; considerando que a utilização excessiva da Internet está associada a problemas relativos às obrigações diárias, à pioria das notas, ao fraco desempenho escolar e académico ou ao fraco desempenho profissional; considerando que a prevalência das dependências digitais e a sua associação a sintomas de perturbações mentais comuns é um problema crescente de saúde pública e, como tal, deve ser uma preocupação dos decisores políticos; considerando que é necessária mais investigação para contribuir para o desenvolvimento dos critérios de diagnóstico mais adequados e determinar os fatores de risco das diferentes dependências digitais; considerando que determinados serviços, produtos ou características que podem não afetar os adultos podem, no entanto, ser altamente perigosos, causadores de dependência ou ser nocivos para as crianças, nomeadamente devido ao impacto cumulativo de uma conjugação de várias características ou devido ao impacto prolongado ao longo do tempo;
E. Considerando que todos os serviços e produtos em linha a que as crianças podem aceder devem ser concebidos tendo como principal consideração o superior interesse da criança; considerando que determinados serviços e produtos em linha podem ser altamente perigosos, causadores de dependência ou ser nocivos para as crianças, nomeadamente devido ao impacto combinado de várias características ou ao seu impacto cumulativo ao longo do tempo;
F. Considerando que, de acordo com alguns estudos, o tempo excessivo diante do ecrã ou a utilização problemática podem afetar o desenvolvimento cerebral; considerando que o aumento dos problemas de utilização das redes sociais está associado a défices de atenção, períodos de atenção mais curtos, impulsividade e sintomas de perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA)(8); considerando que a utilização intensa das redes sociais já foi associada a níveis mais baixos de massa cinzenta em certas zonas do cérebro, tal como acontece com outras substâncias que criam dependência; considerando que se demonstrou que o tempo excessivo diante do ecrã pode ter efeitos potenciais no neurodesenvolvimento, na aprendizagem e na memória e que o estilo de vida sedentário associado ao tempo passado nos meios de comunicação eletrónicos acarreta um potencial risco acrescido de neurodegeneração precoce(9);
G. Considerando que a conceção de forma a criar dependência pode ser vista como tendo um impacto negativo em todos, e não apenas nas pessoas que apresentam padrões de utilização problemática; considerando que a conceção de forma a criar dependência dificulta a concentração na tarefa presente devido a distrações, como mensagens e notificações, que perturbam constantemente a concentração das pessoas; considerando que a conceção dos serviços em linha de forma a criar dependência conduz a uma maior pressão com vista ao desempenho e à pressão social para estar permanentemente em linha e ligado, aumentando o risco de stress e esgotamento profissional; considerando que os consumidores em linha são cada vez mais confrontados ao longo do dia com uma sobrecarga de informação e enormes estímulos sensoriais – que podem resultar numa capacidade cognitiva limitada – e que as interfaces de utilizador oferecem apenas um controlo limitado dos seus dados; considerando que o tempo que as pessoas passam diante do ecrã é tempo em que não estão fisicamente ativas, não se movem, não estão no exterior nem param para relaxar – estando tudo isto associado ao bem‑estar físico e mental e sendo essencial para o desenvolvimento das crianças; considerando que os adolescentes que passam pouco tempo em comunicações eletrónicas são, em geral, os mais felizes; considerando que as pessoas que deixam de utilizar as redes sociais durante uma semana sentem melhorias significativas em termos de bem‑estar;
H. Considerando que, em média, as adolescentes passam mais tempo em linha, no telemóvel, nas redes sociais e a enviar mensagens do que os rapazes; considerando que os rapazes passam mais tempo com jogos e dispositivos eletrónicos em geral; considerando que as raparigas demonstram uma associação mais forte do que os rapazes entre o tempo diante do ecrã e a fraca saúde mental e são mais de duas vezes mais suscetíveis de terem níveis clinicamente relevantes de sintomas depressivos do que os rapazes; considerando que os serviços em linha que criam dependência visam frequentemente os menores ou estão acessíveis a crianças de todas as idades; considerando que todos os serviços e produtos a que as crianças podem aceder devem ser seguros para elas e ter em consideração o superior interesse da criança;
I. Considerando que as interfaces de alguns serviços digitais exploram vulnerabilidades psicológicas semelhantes às que caraterizam a dependência do jogo; considerando que as características da conceção de forma a criar dependência influenciam intencionalmente as vulnerabilidades dos consumidores, fazendo com que estes passem muito mais tempo em aplicações e consumam mais do que pretendiam; considerando que as plataformas utilizam técnicas de ludificação – ou seja, uma conceção comportamental que utiliza mecânicas de jogo para recompensar a realização de tarefas e dar aos utilizadores a ilusão de escolha e controlo, ao mesmo tempo que estão sujeitos a uma cronologia deliberadamente muito rigorosa;
J. Considerando que as características da conceção de forma a criar dependência estão frequentemente associadas a padrões psicossociais que jogam com os desejos, vulnerabilidades e necessidades psicológicas dos consumidores – tais como a pertença social, a ansiedade social, o receio de perder algo importante (o que é encorajado por informações disponíveis apenas temporariamente, como «histórias», «está a escrever...»), os efeitos de rede, a necessidade premente de terminar as tarefas num fluxo, mesmo que interrompido, nomeadamente mediante a eliminação de todos os momentos intuitivamente adequados para terminar uma tarefa, também conhecidos como «sinais de que é tempo de parar» (deslizar da página sem fim, «flashes» de conteúdos de grande relevo que são imediatamente ocultados à medida que carrega o fluxo), reprodução automática através do estabelecimento de objetivos para os utilizadores, como «streaks», e que jogam igualmente com a perda de autocontrolo; considerando que as características da conceção podem criar dependência por diferentes razões, nomeadamente uma recompensa variável intermitente que causa um aumento da dopamina, tal como a dinâmica das máquinas de jogo, como as notificações automáticas, ou a reciprocidade social que causa reações químicas no cérebro – caso em que, por um lado, as pessoas recebem uma gratificação social, como os «likes», e, por outro, elas sentem pressão social para responder aos outros, por exemplo, os relatórios de leitura; considerando que as características acima descritas se conjugam com uma personalização granular para influenciar os utilizadores a nível individual, reforçando assim os padrões de comportamento e os riscos identificados; considerando que as crianças são mais vulneráveis a essas características, especialmente nas fases iniciais do seu desenvolvimento;
K. Considerando que os serviços modernos baseados em dados colocam o consumidor numa posição mais fraca, criando desequilíbrios de poder e uma assimetria digital, o que resulta num estado universal de vulnerabilidade digital que se deve a fatores internos e externos que escapam ao controlo do consumidor; considerando que os consumidores se deparam constantemente com uma IA que consegue detetar e explorar com facilidade as suas vulnerabilidades e com serviços cuja arquitetura de escolha é alterada com regularidade para maximizar as taxas de conversão e a participação; considerando que tal demonstra que é imperativo não limitar o conceito de vulnerabilidade só aos grupos «tradicionalmente protegidos», mas aplicá‑lo a todos os consumidores;
L. Considerando que as práticas que criam dependência foram estudadas empiricamente e incluem características de conceção como: o deslizar da página sem fim («infinite scroll»), a recarga de páginas («pull to refresh»), as funcionalidades de vídeo «never‑ending autoplay», as recomendações personalizadas, as notificações de recuperação («recapture notifications») – ou seja, notificações para recuperar a atenção dos utilizadores após saírem dum serviço ou aplicação –, o jogo por marcação («playing by appointment») em determinados momentos do dia, a conceção que causa «time fog» – ou seja, uma perceção diluída do tempo passado na plataforma – ou notificações sociais falsas – criando a ilusão de atualizações no círculo social em linha do utilizador; considerando que essas características são frequentemente encontradas em conjunto com elementos personalizados; considerando que os consumidores são estimulados a passar mais tempo nestas plataformas; considerando que outras características da conceção persuasivas são elementos como o botão «like», as funções de relatórios de leitura, os avisos «está a escrever...», mas também o número de seguidores acumulados numa plataforma, as cores que as plataformas utilizam, as notificações automáticas e as restrições temporais dos conteúdos, tais como as «histórias» disponíveis temporariamente; considerando que o desenvolvimento extremamente rápido das redes sociais exige uma investigação contínua, especialmente no que diz respeito à saúde mental e aos menores;
M. Considerando que certos sistemas de recomendação – que são baseados tanto na personalização como na interação, como cliques e «likes» – representam potencialmente uma importante característica de conceção persuasiva, criadora de dependência ou comportamental; considerando que, simultaneamente, os sistemas de recomendação podem contribuir para a funcionalidade das plataformas de modo a reforçar a interação social mas que, muitas vezes, também visam manter os utilizadores na plataforma; considerando que o Regulamento Serviços Digitais (RSD) introduziu uma série de obrigações de transparência para os sistemas de recomendação;
N. Considerando que muitas empresas tecnológicas utilizam painéis experimentais como base para as suas decisões de conceção; considerando que essas experiências reais são feitas diretamente nos consumidores, sem o seu conhecimento ou consentimento; considerando que, devido à falta de transparência na realização de tais experiências, não é claro até que ponto elas estão sujeitas a medidas de segurança;
O. Considerando que as características da conceção de forma a criar dependência acima descritas não podem ser resolvidas simplesmente através da imposição de prazos aos serviços em linha, uma vez que esta abordagem transfere a responsabilidade para o indivíduo em vez de abordar a questão central da conceção criadora de dependência dos serviços em linha orientados para o lucro; considerando que nenhuma das «soluções» implantadas pelas plataformas conduziu a uma alteração ou diminuição séria da utilização dos serviços em linha; considerando que os adolescentes não aceitam prontamente a regulação parental da sua utilização das redes sociais e, muitas vezes, podem contornar facilmente quaisquer restrições técnicas que lhes sejam impostas; considerando que medidas como os controlos parentais e a literacia digital complementam a responsabilidade dos prestadores de proteger e promover os direitos das crianças no ambiente digital, nomeadamente através de medidas de segurança desde a conceção, a fim de assegurar que a conceção dos seus produtos e serviços não cause danos às crianças; considerando que resulta de investigação que regras claras e uma comunicação construtiva com as crianças podem ajudar a prevenir a dependência das redes sociais; considerando que os serviços digitais devem disponibilizar uma plataforma que os pais e educadores possam consultar para se informarem sobre os perigos da utilização excessiva da Internet e sobre a forma de falar sobre isso com as crianças e os jovens; considerando que estão a decorrer debates no contexto de iniciativas não legislativas em curso, tais como o código de conduta da UE sobre a conceção adequada à idade (no âmbito da estratégia europeia para uma Internet melhor para as crianças (BIK+) de 2022), a abordagem da Comissão Europeia em matéria de saúde mental e o Plano de Ação para a Educação Digital (PAED) 2021‑2027;
P. Considerando que os artigos 25.º, 28.º, 38.º e 27.º do RSD preveem a proibição de características enganosas ou manipuladoras, a transparência e a obrigação de escolha dos sistemas de recomendação e da definição de perfis, bem como medidas para proteger os menores; considerando que o RSD já introduz disposições contra a utilização de «padrões obscuros», contudo estas limitam‑se à arquitetura de escolha, influenciam as opções mas não abordam a conceção comportamental que, por si só, cria dependência; além disso, também têm um âmbito de aplicação limitado, dado que não se aplicam a todos os serviços em linha mas apenas às plataformas em linha, excluindo assim importantes serviços problemáticos como os jogos em linha; considerando que a legislação sobre inteligência artificial(10) a aprovar em breve procura proibir sistemas de IA que implantem características subliminares, mas que se limita a sistemas que manipulem intencionalmente ou utilizem técnicas enganosas;
Conceção dos serviços em linha de forma a criar dependência
1. Congratula‑se com o balanço de qualidade da legislação da UE relativa à proteção dos consumidores realizado pela Comissão em matéria de «equidade digital», dado que constitui uma oportunidade única para abrir caminho a uma nova geração de legislação de defesa do consumidor que inverterá as tendências negativas que têm vindo a enfraquecer a posição dos consumidores e a reduzir os seus direitos num mundo dominado pelas tecnologias digitais; para tal, insta a Comissão a rever os conceitos e as definições da legislação de proteção dos consumidores no balanço de qualidade – nomeadamente as definições de «consumidor», de «consumidor vulnerável» e de «comerciante» – a fim de proteger os consumidores contra danos e dar resposta aos desafios decorrentes da era dos dados;
2. Considera que a dependência digital e as tecnologias persuasivas são problemas que exigem uma resposta regulamentar abrangente por parte da UE, através de uma série de iniciativas políticas de apoio, para combater a dependência digital de forma eficaz e capacitar os cidadãos para que possam decidir como utilizam os serviços e produtos digitais em função dos seus objetivos, estando protegidos contra novas formas de dependência e utilizações problemáticas da Internet;
3. Manifesta‑se alarmado com o facto de determinadas plataformas e outras empresas tecnológicas explorarem vulnerabilidades psicológicas para conceberem interfaces digitais para interesses comerciais que maximizem a frequência e duração das visitas dos utilizadores, de modo a prolongar a utilização dos serviços em linha e a criar um envolvimento com a plataforma; salienta que a conceção de forma a criar dependência pode causar danos à saúde física e psicológica, bem como danos materiais aos consumidores; insta a Comissão a avaliar urgentemente e, se for apropriado, colmatar as lacunas regulamentares existentes no que respeita às vulnerabilidades dos consumidores, aos padrões obscuros e às características de forma a criar dependência dos serviços digitais;
4. Salienta que – apesar do quadro jurídico da UE em forte evolução no domínio digital, designadamente o RSD ou o Regulamento Inteligência Artificial – a questão da conceção de forma a criar dependência não está suficientemente contemplada na legislação da UE em vigor e, se não for abordada, pode causar um maior agravamento no domínio da saúde pública, afetando especialmente os menores; considera que se o tema continuar a não ser abordado, o Parlamento deve tomar a dianteira e exercer o seu direito de iniciativa legislativa; insta a Comissão a assegurar uma aplicação forte e sólida de toda a legislação em vigor nesta matéria com o maior grau de transparência possível; insta a Comissão a adotar as orientações necessárias nos termos dos artigos 25.º e 35.º do RSD para o efeito;
5. Insta a Comissão a examinar quais as iniciativas políticas necessárias e a propor legislação para combater a conceção de forma a criar dependência dos serviços em linha, quando tal for adequado e necessário; congratula‑se com a iniciativa da Comissão de assegurar um mesmo nível de equidade em linha e fora de linha; exorta a Comissão – na sua revisão da Diretiva Práticas Comerciais Desleais (DPCD)(11), da Diretiva Direitos dos Consumidores(12) e da Diretiva Cláusulas Abusivas(13) (o chamado balanço de qualidade digital) – a assegurar um elevado nível de proteção no ambiente digital, prestando especial atenção à resolução dos problemas crescentes relacionados com a conceção geradora de dependência, comportamental e manipuladora dos serviços em linha, e ainda nesta revisão a avaliar as definições de «consumidor», de «consumidor vulnerável» e de «comerciante» na era digital; salienta a importância de assegurar uma aplicação eficaz e coerente do direito dos consumidores, prestando especial atenção aos grupos vulneráveis, como as crianças;
6. Recorda que o estudo comportamental da Comissão sobre práticas comerciais desleais no ambiente digital concluiu que as disposições em matéria de transparência contra os padrões obscuros e as práticas de personalização manipuladoras – tanto para os consumidores médios como para os vulneráveis – são insuficientes para contrariar as suas consequências negativas; insta a Comissão a avaliar urgentemente a necessidade de proibir as práticas mais nocivas que ainda não constam da lista negra de práticas comerciais enganosas constante do anexo I da DPCD ou de outra legislação da UE; recorda que vários padrões obscuros e práticas manipuladoras já podiam estar proibidos ao abrigo da lista de práticas comerciais enganosas constante do anexo I da DPCD; assinala, além disso, que os artigos 5.º a 9.º da DPCD – baseados em princípios e relativos à diligência profissional, às omissões e ações enganosas e às práticas comerciais agressivas – constituem uma base para avaliar a equidade da maioria das práticas das empresas face aos consumidores;
7. Recorda que a avaliação da Comissão sobre taxonomias de padrões obscuros assinala que certas características da conceção de forma a criar dependência não podem ser tidas em conta na legislação em vigor, incluindo o deslizar da página sem fim e a função de reprodução automática por predefinição; salienta que outras características da conceção de forma a criar dependência – como as notificações automáticas constantes ou as notificações de relatórios de leitura – também não são abrangidas pela legislação em vigor; recorda que continua a haver incerteza jurídica sobre as regras aplicáveis à conceção de interfaces de forma a criar dependência; sublinha as orientações da DPCD; salienta a importância de manter as orientações atualizadas e proporcionar segurança jurídica no contexto da nova evolução tecnológica; insta a Comissão a avaliar e proibir as técnicas de dependência nocivas que não sejam abrangidas pela legislação em vigor;
8. Considera que qualquer revisão da DPCD deve ter em conta a suscetibilidade dos consumidores devido ao poder desigual existente na relação entre comerciantes e consumidores decorrente de fatores internos e externos que escapam ao controlo dos consumidores; salienta que a autonomia dos consumidores não deve ser prejudicada pelas práticas comerciais dos comerciantes, em particular, a conceção e o funcionamento da interface; para o efeito, considera que a DPCD deve integrar o conceito de assimetria digital; assinala que tanto os consumidores como os responsáveis pela aplicação da lei muitas vezes desconhecem o que acontece por detrás das interfaces dos serviços em linha, devido à falta de conhecimentos e de visão; insta a Comissão a ponderar a possibilidade de inverter o ónus da prova no caso das práticas que a Comissão ou as autoridades nacionais tenham constatado ou presumam ser geradoras de dependência; considera que as empresas devem ter a obrigação de desenvolver produtos e serviços digitais éticos e justos, sem padrões obscuros nem conceção enganosa ou geradora de dependência; considera que tal constitui uma diligência profissional razoável; observa que é fundamental partilhar os resultados dos painéis experimentais dos prestadores de serviços em linha, se for caso disso, bem como os efeitos das suas plataformas nos consumidores, com as autoridades e os consumidores, a fim de demonstrar os efeitos das características de conceção, incluindo que a característica de conceção não cria dependência; insta a Comissão a examinar e rever a experimentação com os consumidores a este respeito; considera que a definição de «decisão de transação» constante da DPCD inclui a continuar a utilizar o serviço (por exemplo, deslizar da página ao longo dum fluxo), visualizar conteúdos publicitários ou clicar numa ligação, tal como descrito nas orientações da Comissão sobre a DPCD; reitera que a legislação horizontal em matéria de proteção do consumidor tem de dar resposta ao facto de a assimetria digital também afetar os responsáveis pela aplicação da lei e, para este fim, exorta a Comissão a rever e, se pertinente, consolidar o Regulamento relativo à cooperação no domínio da proteção dos consumidores(14);
9. Solicita à Comissão que avalie os efeitos em termos de dependência e de saúde mental dos sistemas de recomendação baseados na interação – em particular dos sistemas hiperpersonalizados, que mantêm os utilizadores na plataforma o máximo de tempo possível em vez de lhes fornecerem informações de forma mais neutra – e que preste especial atenção aos serviços não abrangidos pelas obrigações decorrentes do RSD; insta a Comissão a clarificar melhor a avaliação dos riscos e a atenuação das plataformas em linha de muito grande dimensão relativamente aos potenciais danos para a saúde causados pela conceção de forma a criar dependência dos sistemas de recomendação, aquando da aplicação dos artigos 34.º e 35.º do RSD; solicita ainda que se analise se, e em que medida, é desejável criar uma obrigação de não utilizar «por predefinição» sistemas de recomendação baseados na interação e se o direito dos consumidores lhes deve oferecer uma personalização significativa que lhes permita um controlo efetivo; sublinha que os testemunhos dos denunciantes deixam claro que podem ser usados sistemas de recomendação alternativos e mais seguros – como os baseados na ordem cronológica, os que proporcionam aos utilizadores um controlo mais real sobre os conteúdos ou os que se baseiam em parâmetros mais seguros – e insiste na proteção dos consumidores através destas alternativas mais seguras, mesmo que sejam menos rentáveis para as plataformas de redes sociais; insta a Comissão a explorar possibilidades de promover a abertura da infraestrutura das rede sociais, de modo a que os utilizadores possam aceder a aplicações de terceiros ou acrescentar funções externas às interfaces originais, distanciando‑se assim das características originais das redes sociais que criam dependência;
Conceção ética dos serviços em linha
10. Exige que a Comissão – na sua legislação em matéria de conceção de forma a criar dependência – proponha um «direito a não ser perturbado» digital para capacitar os consumidores, desligando todas as características de procura de atenção desde a conceção e permitindo que os utilizadores optem por ativar essas funcionalidades por meios simples e facilmente acessíveis, incluindo eventualmente um aviso obrigatório sobre os potenciais perigos de ativar estas características de «opt‑in», oferecendo aos consumidores uma verdadeira escolha e autonomia sem os sobrecarregar com uma sobrecarga de informação;
11. Insta a Comissão a promover a conceção ética dos serviços em linha por predefinição; está firmemente convicto de que os fornecedores devem abandonar as características das plataformas que destacam a monopolização da atenção dos utilizadores; insta a Comissão a criar uma lista de boas práticas em matéria de características de conceção que não seja criadora de dependência ou manipuladora e que garanta que os utilizadores têm controlo pleno e podem tomar medidas conscientes e informadas em linha sem enfrentarem uma sobrecarga de informação ou sofrerem influências subconscientes; salienta que as ações políticas neste domínio não devem constituir um ónus para os consumidores, especialmente para os utilizadores vulneráveis ou os seus tutores legais, mas sim abordar os danos causados pela conceção que cria dependência; assinala as boas práticas em matéria de «pensar antes de partilhar», desligar todas as notificações por predefinição, recomendações em linha mais neutras – como as baseadas na ordem cronológica ou num maior controlo do utilizador –, a escolha inicial entre aplicações a cores ou em escala de cinzentos, avisos quando os utilizadores passaram mais de 15 ou 30 minutos num serviço específico, o bloqueio automático de determinados serviços em linha após um período de utilização pré‑determinado – nomeadamente para os menores –, a opção de os utilizadores limitarem o acesso a certas aplicações entre certas horas – nomeadamente para os menores – ou sínteses semanais do tempo total diante do ecrã, desagregadas por serviço em linha, ou campanhas de sensibilização nas aplicações sobre os potenciais riscos resultantes de comportamentos problemáticos em linha; considera, além disso, que a ampla utilização de orientações educativas e planos de prevenção, bem como de campanhas de sensibilização, deve promover estratégias de autocontrolo para ajudar as pessoas a desenvolver comportamentos em linha mais seguros e novos hábitos saudáveis;
12. Considera que qualquer resposta a nível da UE deve ter por objetivo uma consulta, cooperação e colaboração significativas entre as partes interessadas e envolver particularmente os legisladores, os organismos de saúde pública, os profissionais de saúde, a indústria – especialmente as PME –, as entidades reguladoras dos meios de comunicação social, as organizações de consumidores e as ONG; sublinha que as partes interessadas são incentivadas a trabalhar em conjunto no sentido de desenvolver, avaliar e tomar medidas regulamentares para prevenir e minimizar os danos associados a comportamentos problemáticos em linha; exorta a Comissão a facilitar um diálogo construtivo entre todas as partes interessadas pertinentes; sublinha a necessidade de prever fóruns adequados para este diálogo;
13. Salienta o impacto significativo da conceção de forma a criar dependência em todas as pessoas, mas especialmente nas crianças e nos adolescentes; sublinha a necessidade de prosseguir a investigação sobre a conceção de forma a criar dependência, as suas formas e os seus efeitos; insta a Comissão a coordenar, facilitar e financiar a investigação orientada e também a envidar esforços adicionais a nível internacional para promover a regulação da conceção de forma a criar dependência em linha a este respeito e aponta a necessidade de promover e aplicar iniciativas políticas e normas industriais em matéria de segurança desde a conceção para serviços e produtos digitais destinados a crianças que possam fomentar a conformidade com os direitos das crianças;
o o o
14. Encarrega a sua Presidente de transmitir a presente resolução ao Conselho e à Comissão.
Tempo diário médio passado pelos utilizadores a usar a internet, a nível mundial, no 4.º trimestre de 2022, por idade e género – Statista, 22 de maio de 2023, https://www.statista.com/statistics/1378510/daily-time-spent-online-worldwide-by-age-and-gender/
Lopez‑Fernandez, O. and Kuss, D., Harmful Internet Use Part I: Internet addiction and problematic use, EPRS, STOA, p. 51, https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2019/624249/EPRS_STU(2019)624249_EN.pdf
Lopez‑Fernandez, O. and Kuss, D., Harmful Internet Use Part I: Internet addiction and problematic use, EPRS, STOA, p. 51, https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2019/624249/EPRS_STU(2019)624249_EN.pdf.
Ver, nomeadamente: Sohn, S., Rees, P., Wildridge, B., Kalk, N. J., and Carter, B. R. (2019). Prevalence of problematic smartphone usage and associated mental health outcomes amongst children and young people: a systematic review, meta‑analysis and GRADE of the evidence. BMC Psychiatry, 19, 2019. Peterka‑Bonetta, J., Sindermann, C., Elhai, J.D., Montag, C., Personality associations with smartphone and internet use disorder: a comparison study including links to impulsivity and social anxiety. Front Public Health 7:127, 2019; Samra, A., Warburton, W. A., and Collins, A. M., Social comparisons: A potential mechanism linking problematic social media use with depression. Journal of Behavioral Addictions, 2022; Laconi, S. et al. Cross‑cultural study of Problematic Internet Use in nine European countries, In: Computers in Human Behavior, 84, pp.430‑440, 2018; Lopez‑Fernandez, O. and Kuss, D. Harmful Internet Use Part I: Internet addiction and problematic use, EPRS, STOA, p. 51; Cesarina Mason, M., Zamparo, G., Marini, A., and Ameen, N. Glued to your phone? Generation Z's smartphone addiction and online compulsive buying In: Computers in Human Behaviour, Vol. 136, novembro de 2022; Learning to deal with Problematic Usage of the Internet, Revised Edition / COST Action 2023; Boer, M. #ConnectedTeens Social media use and adolescent wellbeing, 2022; Neophytou, E. Manwell, L.A. and Eikelboom, R. Effects of excessive screen time on neurodevelopment, learning, memory, mental health, and neurodegeneration: a scoping review, Int J Ment Health Addiction, 19, 2019, pp. 724‑744.
Boer, M. #ConnectedTeens Social media use and adolescent wellbeing, 2022; Boer, M., Stevens, G. Finkenauer, C., van den Eijnden, R., Attention Deficit Hyperactivity Disorder‑Symptoms, Social Media Use Intensity, and Social Media Use Problems, In Adolescents: Investigating Directionality, Child Development, 91, 4, 2020.
Neophytou, E., Manwell, L.A. and Eikelboom R., Effects of excessive screen time on neurodevelopment, learning, memory, mental health, and neurodegeneration: a scoping review Int J Ment Health Addiction, 19, 2019, pp. 724‑744.
Koning, I.M., et al., Bidirectional effects of internet‑specific parenting practices and compulsive social media and internet game rules, Journal of Behavioral Addictions 2018, 624‑632.
Diretiva 2005/29/CE, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno (JO L 149 de 11.6.2005, p. 22).
Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95 de 21.4.1993, p. 29).
Regulamento (UE) 2017/2394 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2017, relativo à cooperação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de proteção dos consumidores e que revoga o Regulamento (CE) n.º 2006/2004 (JO L 345 de 27.12.2017, p. 1).